Mens sana in corpore sano (“mente sã num corpo são”) é um aforismo muito antigo, atribuído ao poeta romano Juvenal. No entanto, nos dias que correm, observo que pouca importância tem sido dado à parte “mente sã”, pelo menos quando comparando com a outra porção deste aforismo, o “corpo são”. Quantas campanhas estão em curso para a promoção da Saúde Mental? Poucas, insuficientes, na minha opinião. Isto torna-se ainda mais visível quando nos tentamos lembrar das campanhas de promoção do “corpo são”, desde as campanhas que promovem o exercício físico, passando pelas que promovem uma alimentação saudável e chegando até outras como a prevenção do consumo de tabaco e álcool.
Poderá argumentar-se que estas campanhas, mais ligados à parte do corpo, estejam indissocialvelmente ligadas à saúde mental. E isto é verdade, pois sabemos que o exercício físico, a boa nutrição e a prevenção do consumo de substâncias, estão ligados a uma boa saúde mental e à prevenção das doenças mentais; no entanto, a minha impressão é que estas campanhas raramente focam o conceito de Saúde Mental e a importância das mesmas para prevenir as doenças mentais ou promover a Saúde Mental do indivíduo. Será uma questão de preconceito? De estigma? Do receio de falar das doenças mentais? Infelizmente, creio que sim.
Porque é importante promover a Saúde Mental e prevenir as Doenças Mentais?
Segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS): cerca de 450 milhões de pessoas em todo o mundo sofrem de uma doença mental; 1 em cada 4 pessoas irá desenvolver uma perturbação mental ao longo da sua vida; a nível global 5 das 10 causas principais de incapacidade e morte prematura são doenças psiquiátricas. Estima-se que em 2030 uma doença mental, a Depressão, irá ser a principal causa de incapacidade e morte prematura, acima de outras patologias como as doenças cardiovasculares, as doenças respiratórias, a diabetes, as doenças infecciosas, etc.
É interessante refletir na quantidade de campanhas de prevenção que se focam na prevenção da doença cardiovascular, das doenças respiratórias, da diabetes, quando comparadas com aquelas que se focam na prevenção da depressão. Não digo que isto é mau por si, ainda bem que se está a prevenir a doença e a melhorar a saúde das pessoas (em certas áreas)… Mas porquê negligenciar as doenças mentais? Fica a questão.
Dados do “Estudo Epidemiológico Nacional de Saúde Mental“, realizado por investigadores da Faculdade de Ciências Médicas (NOVA), indicam que em Portugal 22.9 % da população sofre de alguma perturbação psiquiátrica, pondo-nos no “pódio” dos países europeus e apenas ligeiramente abaixo das estimativas para os Estados Unidos. Esta investigação refere ainda que entre 34 a 82% destas pessoas doentes, não recebe tratamento adequado (sendo o valor mais alto para as “perturbações ligeiras” e o valor mais baixo para as “perturbações graves”). Um cenário, a meu ver, preocupante… Que deveria levar a maior ação por parte dos nossos decisores em Saúde e da Sociedade em geral.
Os dados são conclusivos, os problemas de saúde mental representam um grave problema de saúde pública. Os custos diretos (despesas assistenciais) e indiretos (por exemplo: baixas por doença, incapacidade permanente, morte prematura) atingem uma magnitude preocupante. Por isso a OMS recomenda, desde há muito tempo, que “de forma a reduzir o peso e as consequências das perturbações mentais, tanto a nível de saúde, como social e económico é essencial que os países prestem maior atenção à prevenção da doença mental, assim como à promoção da saúde mental”.
Afinal o que é a Saúde Mental?
A Organização Mundial de Saúde (OMS) define a Saúde Mental como “o estado de bem-estar no qual o indivíduo realiza as suas capacidades, pode fazer face ao stress normal da vida, trabalhar de forma produtiva e frutífera e contribuir para a comunidade em que se insere“.
Nesta definição, a “saúde mental” é entendida como um aspecto vinculado ao bem-estar, à qualidade de vida, à capacidade de amar, trabalhar e de se relacionar com os outros. Com esta perspectiva positiva, a OMS convida a pensar na saúde mental muito para além das doenças e das deficiências mentais.
Quais as diferenças entre Promoção da Saúde Mental e Prevenção das doenças mentais?
A Promoção da Saúde é o processo que permite capacitar as pessoas a melhorar e a aumentar o controle sobre a sua saúde (e seus determinantes – sobretudo, comportamentais, psicossociais e ambientais). Parte de um “paradigma salutogénico”, ou seja, valoriza os factores que interferem positivamente na saúde levando a medidas que não se dirigem a uma determinada doença ou desordem, mas servem para aumentar a saúde e o bem-estar gerais. Enfatiza a transformação das condições de vida e de trabalho que conformam a estrutura subjacente aos problemas de saúde, demandando uma abordagem intersectorial.
Por outro lado a Prevenção da Doença visa diminuir a probabilidade da ocorrência de uma doença (incidência), assim como tratar a doença ou reparar a incapacidade (prevalência) e atenuar os seus efeitos ou futuras consequências. Parte de um “paradigma patogénico”, valorizando os fatores que interferem negativamente na saúde. As ações preventivas definem-se como intervenções orientadas a evitar o surgimento de doenças especificas, reduzindo sua incidência e prevalência.
Sobretudo nas intervenções mais básicas, os conceitos são em parte sobreponíveis, vejamos o exemplo de uma campanha de prevenção do tabagismo, poderá tratar-se de uma medida de Promoção da Saúde (quando o objetivo principal é melhorar a saúde como um todo) ou de Prevenção de Doença (quando o objetivo principal é a redução da incidência de doenças pulmonares, por exemplo).
Tanto os programas de Promoção como as estratégias de Prevenção tem como alvo interferir nos chamados “determinantes de Saúde Mental” ou, mais vulgarmente, nos fatores de risco e nos fatores protetores. Ambos podem ser de natureza individual, familiar, ambiental ou socioeconómica.
A tabela 1 dá-nos um relance dos principais determinantes sociais, ambientais, económicos de Saúde Mental.
Fatores de risco | Fatores protetores |
Acesso fácil a drogas e álcool | Interações sociais positivas |
Isolamento/ Alienação | Participação social |
Falhas a nível de educação, alojamento, transportes | Tolerância social |
Desemprego | Integração de minorias étnicas |
Guerra/ Violência | Bons serviços de suporte social |
Descriminação/ Racismo | Empowerment |
Deficiente nutrição | |
Rejeição por pares | |
Stress laboral | |
Desigualdades sociais |
Tabela 1: Determinantes sociais, ambientais, económicos de Saúde Mental. Esta não é uma lista exaustiva dos determinantes, apenas uma seleção.
A tabela 2 dá-nos um relance dos principais determinantes individuais ou familiares de Saúde Mental.
Fatores de risco | Fatores protetores |
Abuso ou negligência infantil | Adaptabilidade |
Abuso ou negligência no idoso | Autonomia |
Uso excessivo de substâncias | Literacia |
Exposição à violência, agressão ou trauma | Interação positiva pais-filho |
Doença física | Apoio social de família e amigos |
Falta de competências sociais | Boa autoestima |
Acontecimentos de vida stressores | Boa capacidade de lidar com o stress |
Doença mental parental | Prática de exercício físico |
Complicações na gravidez ou no parto | Estimulação cognitiva da nascença à velhice |
Tabela 2: Determinantes individuais ou familiares de Saúde Mental. Esta não é uma lista exaustiva dos determinantes, apenas uma seleção.
Como podemos observar das tabelas acima, existem inúmeros determinantes que poderiam ser alvo de programas de promoção e prevenção na área da Saúde Mental. Estes determinantes gerais, são comuns a vários problemas de saúde mental/ doenças mentais, pelo que intervenções dirigidas a estes fatores genéricos podem levar a elevada abrangência de efeitos preventivos.
Alguns exemplos de estratégias de Promoção e de Prevenção Primária Universal
Para melhorar a Saúde Mental como um todo, é necessário investir em programas de Promoção e de Prevenção (não seletiva, ou seja, universal), que são, neste caso, muito sobreponíveis. Deixo aqui alguns exemplos do documento da OMS (2004), Prevention of mental disorders : effective interventions and policy options:
- Melhorar a nutrição: tem como efeitos um desenvolvimento cognitivo saudável; melhoria dos resultados educacionais e redução do risco de doenças mentais;
- Melhorar condições de habitação: demonstrou-se que melhor as condições de habitação melhora os resultados de saúde (física e mental);
- Melhorar a acessibilidade à educação: verificou-se que medidas a este nível levam a maior proteção contra doenças mentais, através de melhoria das competências sociais, intelectuais e emocionais;
- Reduzir insegurança económica: a insegurança económica é um fator de stress major e de forma arrastada pode levar a aumento do consumo de substâncias, maior risco de depressão e de suicídio. Intervenções a este nível podem prevenir estas consequências;
- Reforçar as redes sociais: através do envolvimento de vários elementos do sistema (política, media, escolas, profissionais de saúde, comunidades de cidadãos, etc.), levando a empowerment, sentido de pertença e autoconfiança dos indivíduos;
- Reduzir o dano causado por substâncias aditivas: quer através de maior taxação, ou limitando anúncios ou restringindo o seu acesso (por exemplo: limites de idade legais mais elevados), levam à prevenção das perturbações de abuso de substâncias e consequentemente de outras perturbações mentais.
Estes são só alguns exemplos de programas, que como podemos verificar, só são possíveis de aplicar através de uma abrangente colaboração entre as vários estruturas da sociedade.
Um exemplo de prevenção específica, o caso da depressão.
Como referido anteriormente, a depressão é uma das principais causas de incapacidade e morte prematura. É fundamental prevenir e tratar precocemente os estados depressivos. Mais uma vez existem estratégias comprovadas tanto de aplicação universal (intervenções dirigidas a uma população ou grupo populacional, geral, não identificado com base no risco aumentado), como de prevenção seletiva (em que o alvo são indivíduos ou subgrupos da população cujo risco de desenvolver doença mental é significativamente maior que a média) ou de prevenção indicada (cujo alvo são indivíduos de alto risco, identificados como tendo sintomas ou sinais “mínimos”, indicadores de provável desenvolvimento de doença mental).
A título de exemplo ficam aqui algumas estratégias de prevenção universal da depressão, de acordo com a faixa etária:
- Crianças e adolescentes: Programas em meio escolar, reforçando perícias cognitivas, de resolução de problemas e sociais;
- Adultos: Programas de gestão do stress e conflitos no local de trabalho; programas de promoção exercício físico; pprogramas de aumento da literacia em saúde mental;
- Idoso: Programas de “envelhecimento ativo”, focando no exercício/ estimulação cognitiva e evitando o isolamento.
Resumindo e concluindo.
Os problemas de Saúde Mental são muito frequentes e estão associados a elevada incapacidade e morte prematura. É essencial investir na promoção da saúde mental e na prevenção das doenças mentais, sendo que muito pode ser feito a este nível. Desde medidas que focam a Saúde Mental como um todo abordando os seus determinantes gerais, até estratégias muito específicas que abordam apenas um problema e os seus fatores de risco e protetores específicos.
No entanto, para isto acontecer, é necessário a vontade de todos, desde os decisores na área da Saúde, passando pelos técnicos de Saúde (não só Mental) e claro, das associações de doentes e seus familiares, assim como de vários grupos de influência na sociedade. E claro, para que isto aconteça, é obrigatório que exista literacia em Saúde Mental, não podemos avançar neste campo enquanto os preconceitos, os mitos e as ideias erradas o dominarem.
DG 2016
Suzana Guedes
22 de Outubro de 2016 at 9:07
Falta dar um passo grande na tomada de consciência de que as emoções são sentidas no corpo, por isso corpo e mente são indissociáveis. Falta ainda aceitar que as experiências de vida adversas que levam ao aumento do stress, ansiedade, desespero originam um aumento do cortisol, tendo este uma ligação ao aparecimento de doenças mais frequentes tais como a hipertensão, a diabetes, condições dermatológicas e até de doenças sem explicação médica. Muitos destes doentes têm nas suas histórias de vida situações emocionalmente traumáticas que não são tidas em consideração sendo tratados apenas fisicamente e sem uma ligação ao impacto que as suas histórias de vida tiveram no seu cérebro e consequentemente no se corpo.
Para já só se está a ver o impacto da doença nas emoções. Falta mudar o paradigma e começar a olhar para o impacto que as emoções (negativas) têm no corpo.
Reflexões de um Psiquiatra
22 de Outubro de 2016 at 9:47
Suzana, obrigado pelo comentário e acrescento. Subscrevo as suas palavras. Tenho outro “post na calha” exatamente a falar sobre esse tema. Obrigado mais uma vez.