Isto tem sido um assunto alvo de imenso debate na sociedade científica (e não só). Recentemente, participei num artigo da revista notícias magazine, que tentava sintetizar este tema.
Gostava, no entanto, de expandir um pouco mais a minha opinião.
A perturbação do jogo online (ou “internet gaming disorder“) é uma entidade diagnóstica altamente controversa (ver discussão neste link) e cujos critérios diagnósticos e eventuais terapêuticas propostas, ainda estão em aceso debate. Segundo a DSM-5, classificação utilizada nos EUA, trata-se de uma “entidade para prosseguir a investigação”. Já a Organização Mundial de Saúde, incluirá esta questão como “perturbação”, na sua classificação CID-11, sob o nome “gaming disorder” (ver link).
Mas será comparável à dependência de drogas?
Para mim, penso tratar-se de algo totalmente diferente da dependência de drogas (no sentido mais “tradicional do termo”). Na realidade, quando falamos de drogas, estamos a falar de substâncias externas que interferem diretamente no nosso cérebro e que, diretamente, têm mecanismos que levam à dependência dessa substância (ex: heroína, nicotina, álcool, etc.). As dependências “comportamentais”, ou seja, em que comportamentos e estímulos (que no dão prazer) levam à libertação de substâncias endógenas (naturalmente existentes no nosso cérebro) são, para todos os efeitos, diferentes em termos de mecanismo. Os jogos online, especialmente aqueles que rapidamente nos dão prazer e de forma repetitiva, a chamada “recompensa imediata”, levam à excitação dos nossos centros de prazer e recompensa cerebrais e o ser humano biologicamente está preparado para procurar recompensa e prazer para sobreviver como espécie. Afinal, é isto que nos leva a querer ter sexo, a comer uma boa refeição, a procurar prazer em locais, atividades, arte.
Apesar da perturbação do jogo online ser ainda alvo de debate, não há dúvida que certas pessoas estão mais suscetíveis para criar uma “dependência” de certos jogos (tal como existem dependências de jogos de apostas ou ao nível de comportamento sexual). No entanto, estas pessoas são uma minoria das pessoas que joga online. Nos milhões de pessoas que jogam online, apenas uma pequena percentagem apresenta sinais de dependência, se compararmos com a quantidade de pessoas que experimenta uma droga, seja heroína ou nicotina, a percentagem de pessoas que desenvolve uma dependência é muitíssimo maior. Apesar de se falar muito nos jovens, a propósito deste tema, não se trata de um questão apenas desta faixa etária (adultos vulneráveis também podem apresentar esta dependência).
Mas voltando à pergunta que dá título ao post: de facto, existem pessoas que apresentam sintomas de abstinência quando impedidos de jogar online (em muito semelhantes aqueles apresentados pelos utilizadores de drogas quando impedidos de a elas aceder). Os sintomas típicos da “abstinência” são: irritabilidade, tristeza, ansiedade, deixar de fazer outras atividades importantes e de que gostava para ficar a jogar, mentir aos membros da família sobre o tempo passado a jogar, usar o jogo para aliviar estados de espírito negativos e, apesar de saber das consequências negativas, incapacidade de controlar o tempo de jogo.
Quais os sinais de alerta (aqui sobretudo para os pais), para que um comportamento excessivo não passe a um verdadeiro vício?
Os pais devem estar atentos ao tempo e atividades dos filhos online. Deverão ser estabelecidas regras firmes acerca de horários e tipos de jogos adequados, e isso varia de família para família. Alguns sinais de alarme devem levantar preocupação imediata, tais como, quebra de rendimento escolar e desinteresse por outras atividades (como estar fisicamente com amigos, deixar hobbies ou desporto), reduzir o número de horas de sono para estar a jogar, ficar agressivo ou irritável de forma constante e/ou prolongada sempre que impedido de jogar (por ser o que foi previamente combinado como regra ou, simplesmente, por um imprevisto).
Caros pais preocupados, uma das coisas que parece estar associada ao risco de dependência de internet ou jogos online é, exatamente, o que se passa na família. Leiam este artigo. Em suma, o ambiente em casa, a capacidade de expressar afetos e comunicar, a capacidade de disciplinar sem autoritarismo, parecem todos contribuir para um maior ou menor risco do jovem cair numa dependência deste género.
Como se poderá eventualmente tratar?
Nada está estabelecido sobre o papel da terapêutica farmacológica. Se o jovem sofrer de uma perturbação de ansiedade ou uma depressão, que poderá ser um dos motivos de vulnerabilidade, poderá aí estar indicada a terapêutica farmacológica (ou não, depende). Tendo em conta tratar-se de um problema comportamental, provavelmente o mais indicado é uma psicoterapia com ênfase cognitivo-comportamental; eventualmente, com adolescentes, trabalhar com a família também será obrigatório.
Então e o “fortnite”?
Este jogo em particular – o fortnite – captou a atenção dos jovens e, segundo parece, em idades mais precoces, sendo a uma “última moda”… mas já antes observámos isto com outros jogos online.
A meu ver, em comum, estes jogos estão muitíssimo bem feitos para o seu propósito (que é basicamente manter uma comunidade de jogadores cada vez maior ligada ao seu jogo e, muitas vezes, a investir financeiramente no mesmo – ou seja, em viciar). Deteto no fortnite (como noutros jogos semelhantes) alguns fatores que possam contribuir para algumas mecânicas de adição: ser um jogo rápido, de fácil aprendizagem, e que quer se ganhe ou não, é divertido e dá prazer… portanto uma fonte ilimitada de recompensa imediata, de que o nosso cérebro tanto gosta. Para além disso, mistura vários componentes de jogos de sucesso num só “pacote”: construção, jogar às escondidas, estratégia ou simplesmente “andar aos tiros”. Tem um aspeto muito apelativo, e que varia ao longo do tempo, inclusivamente, tem “temporadas” tal como as séries de televisão, em que pequenas coisas mudam, levando a que perca o potencial de monotonia e, portanto, mantém sempre uma recompensa se se continuar a jogar. E, por fim, um fator muito importante, é um jogo social (os jovens encontram-se e combinam jogar com amigos), mantendo uma interação em casa com os amigos do exterior, algo também muito prazeroso e que dá mais uma recompensa.
Em suma, os mecanismos de adição comportamentais giram à volta do mesmo: recompensas e prazer imediatos, de fácil acesso e aprendizagem; e o nosso cérebro é ótimo a procurar repetir aquilo que nos faz sentir bem e a evitar o que nos faz sentir mal. É como se os programadores tivessem estudado a neurobiologia do cérebro e tivessem criado um produto, que apesar de não interferir de forma não natural (como as drogas) nos circuitos cerebrais de prazer e recompensa, os estimula de uma forma “natural” e extremamente completa… daí o risco de adição, especialmente nos jovens mais vulneráveis (aqueles com menos fontes de prazer, os mais isolados, com mais dificuldades na comunicação familiar, os com auto-estima mais frágil, ou mesmo, aqueles com personalidades mais vincadas no aspeto da procura de prazer imediato).
Em suma, sim acho que há verdade na dependência de jogos online (mas, felizmente, isto ocorre apenas numa minoria dos casos).
Se acharem que isto se poderá estar a passar com algum vosso conhecido, procurem ajuda. Em Lisboa, existe no Hospital de Santa Maria a unidade de atendimento a utentes com Utilização Problemática de Internet (NUPI).
Abraços
DG 2019
PS: Artigo completo do notícias magazine (link)